22 de setembro de 2010

UM HINO AO POVO DA TERCEIRA

"AO POVO
DA
MINHA TERRA
De Junho a Setembro "e até por Outubro adeante" o pôvo canta" folga e ri continuamente.
A alegria do Povo! Gênte que se afêz á vida no cude labôr da terra; encorajada pelo perigo da suas touradas á corda; sentindo latejar no sangue quênte o misterioso heroísmo dos seus avós, que fêz do mais minusculo recanto de Portugal o mais seguro esteio da sua independência; pôvo de poetas e cantadores; alma alegre das desfolhadas, dos terços e das vindimas - ei¬lo nas romarias a cantar, palmilhando léguas a um calôr ardente, para em frente das môças lindas, nos balcões da beira-estra, relancear seus olhos cubiçosos em promessas de amôr que são escrituras. . .
O povo da Terceira! O pôvo das touradas e romarias!
A Senhora dos Milagres; o Senhor S. Pedro; S. Carlos; Santa Rita - quasi toda a côrte celeste que dêsde tempos imemoriais se evoca para alento de creanças ou para pretexto de prazeres, não ha quem consiga destrona-la dos altares em que o pôvo a colocou, para regalo da sua alma sã e para alivio dos seus pezares terrenos!
Atraz dos andores, a poucas horas distantes, os curros das touradas, as camisolas dos pastores, os varapaus da lide!
Crença d’almas. ingénuas, esta do bom pôvo terceirense!
Bôdos de leite e merendeiras loiras, não ha miséria á sua volta. Enchendo os lares ás braçadas. rindo, folgando, o homem do nosso pôvo é o Anjo da Guarda da Pobreza. No seu forno cheio, na sua arca atulhada, ha sempre o pãosinho do pobre e a esmola que o reconforta!
Ceu cinzento dos Açores, país do vento e da névoa! Por detraz da cortina de nuvens em que escondes teu manto azul. ha um sol creadôr e aurifulgente iluminando em chapadas de luz a bôa alma dêste pôvo!
Estrugem no ar os foguetões em cada hora. Ha músicas, gritos, violas a tocar!
Que importa a poeirada do caminho, se os pulmões vão cheios do ar puro dos baldios, do rócio refrigerante das madrugadas em plena serra?
Da Serrêta aos Biscoitos, do Pôrto Martins ás Lages, pelos Altares, pelo Raminho, por toda a redondeza da ilha, o mesmo entusiasmo pela festa, a mesma alegria de viver! Por bagagem do caminheiro, o saco do farnel e o lenço bordado sobre a gola da jaquêta. Cruzada no peito, a viola de dez pontos. No braço, á dependura, um guarda-sol de volta…
Pé descalço mordendo o pó, rôsto tismado que o chapéu abeiro nem sempre livra do sol - lá segue éle por atalhos e veredas, atravessando matos e baldios, a trepar escaleiras, a passar caminhos, derribando portais, .escancarando cancelas - em
demanda do arraial distante onde seus olhos anciosos o esperam, e onde um "catrina" frisado, de enorme cachaceira, promete entontecer o pôvo na balburdia dessa tarde poeirenta.
O pôvo da Terceira! O pôvo das touradas e romarias!
como éle deixa transparecer a sua alma bôa nêstes folguedos em que entretem as horas de ócio, tão próprios do alegre feitio que o torna feliz, e que o distingue. por for¬ma notória, dos demais póvos do arquipélago!
Só privando com ele, auscultando-lhe o sentir de cada hora desde tempos de memória imorredoira, pode bem compreendêr-se a singular complexidabe do seu ver generoso e alegre nos bôdos e romarias. atrevido e audaz nas tourabas á corba, heroico e invencivel nas lutas pela Pátria! E se a Historia regista já, em páginas de glória aurifulgente, a sua impecavel conduta como valente português que sempre soube sê-lo, não ha, erguido bem alto ás excelsas virtudes do seu carácter, um monumento que ateste, completando-as, todas as modalidades da sua alma - na vida pacífica dos campos, na aventurosa existência de longes terras, ou nas diversões em que procura suavisar a amargura do seu viver laborioso e honrado.
E só assim, por um completo conhecimento da sua existencia íntima, poderia bem ajuizar-se do valôr que representa como pôvo, em que as qualidades da velha Raça transparecem, nítidas e precisas, como nas épocas longínquas dum Portugal Maior!
È para que melhor te compreendam - ó Povo da minha terra! que eu escrevo estas páginas da tua vida simples - páginas íntimas de recordação e de saudade, que lá longe, nas terras distantes onde elas te chegarem, levarão á imprecisão dos teus pensamentos a viva luz dos dias claros, de sol alto e mar azul, que são o retrato fiel da tua consciência límpida de honrado Açoreano e Português!"
                                                                                                           João Ilheu 
in, digamos que um prefácio para "TOURADAS E ROMARIAS", da sua autoria publicado em 1929 

É absolutamente necessário que façamos algum esforço por nos situarmos nos anos vinte ou trinta do século passado, para podermos reconhecer o valor deste texto, que deixa bem claro que João Ilheu conhecia muito bem o POVO.
MM

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