1 de setembro de 2010

A TERCEIRA E OS CASTELHANOS

Revista dos Centenários
Dezembro de 1940

A BATALHA DA SALGA VI
por Vitorino Nemésio
A quinta de Bartolomeu Lourenço, num cabeço do vale da Vila, foi das primeiras assaltadas. Os espias que desembarcavam em terra dias antes e vinham aos recados e aos frutos tinham-na marcado, levado para bordo a fama da dona da casa, que era uma perfei¬ção de uma moça, chamada Brianda Pereira. Ao travar-se o combate entraram na quinta, le¬varam-lhe o marido e um filho presos. Os frescais de trigo ainda emmèdados na eira come¬çavam a arder. Brianda, vendo-se sozinha e cercada, com os tarequinhos pelos ares, conseguiu meter-se no meio da gente que descera da Vila com os seus arcabuzes e forquilhões, como que à espera de verdadeira razão para se bater. E, como outras raparigas destoitiçadas, gente para amassar e tender duas cozeduras num dia, atirou-se para a frente a peito descoberto, comunicando aos combatentes o furor que lhe vinha do seu homem roubado, dos di¬totes chulos da soldadesca à sôlta, dos seus trastes quebrados e das searas feitas chamusco.
Os bisonhos soldados da Terceira olhavam para aquele punhado de mulheres des¬norteadas, mas duras, e aquela resolução corajosa e sem cálculo pegava-se-Ihes. Elas não sabiam nada de patriotismo político, da legitimidade do filho da Pelicana ou fôsse lá de quem fôsse: sabiam da casa e da eira, da lenha espalhada nos campos, das paredes esborralhadas, dos homens tirados da casa e da lavoira para irem servir fardados e beberricar pelas tabernas. Era por isso que se batiam, com a mesma simplicidade e o mesmo arreganho com que nos lavadoiros da Vila ajustavam as suas contas por causa de mexericos e picardias. O patriotismo delas era aquele peito e o forquilhão.
Vendo-as em perigo, os defensores da terra sentiram acordar em si o soldado e mais alguma coisa, As mulheres fizeram-se para lavar, cozer e dar de mamar aos filhos. Essa é que era a boa ética da Terceira, desde que havia ali gente, peixe fresco e vacas para ordenhar. Pegaram nas mulheres e recolheram-nas à força na ermida de S. João. Ah, castelhanos!...
Até a velhada obrou prodígios de valor. Às nove horas tinham chegado as ordenan¬ças da cidade e da Praia, os franceses da nau de António Escalim, os reforços de S. Jorge e da Graciosa; para ai seis mil homens. É verdade que os espanhóis tinham caçado a peça de artelharia com que o capitão Artur de Andrade cismara dar cabo dos têrços, Mas, ao meio dia, D. João de Valdez teve de verificar tristemente que os seus cúmplices de terra não vinham; continuavam a bom recato nos algares de carvão e nas criações de dentro. A sorte da batalha ia-se-lhe das mãos. Um renegado da ilha, o prático Henrique de Amores (que pelo nome não perca), disse a Valdez que ainda bem que tomara juízo e se recolhera à nau, por¬que, a saltar em terra. nem a alma se lhe aproveitava,
Um velho de mais de sessenta anos, Gonçalo Anes Machado, foi visto de lança em punho contra uma formação compacta de mais de cinqüenta castelhanos. Furou, destroçou, bateu, e, caído de costas, enquanto teve fôlego, agüentou. A outro, António Gonçalves, um castelhano disse as últimas. Drumond, historiador decente, mas honesto. não resistiu. nos Annaes, à fôrça do documento: «Velho (são as palavras), hoje vos hei-de fazer cabrão». Mas não fêz. Como o espanhol apontasse o arcabuz, António Gonçalves desfechou-lhe o seu, desabafando que depois de velho e sua mulher velha. o não haviam de enxovalhar.
Mas era mais de meio dia e o resultado da acção estava fusco. Os espanhóis, em¬bora fôssem menos, tinham mais ordem e arranque no combate. Foi então que um frade dos agostinhos de Angra meteu o cavalo ao campo de batalha, e, de espada nua, aconselhou a Ciprião de Figueiredo um expediente tão novo em estratégia como o quadrado em Aljubarrota ou os carros blindados no Mosa. A ilha sempre teve uma grande densidade pecuária; quási de quilómetro em quilómetro estende-se um bebedoiro e ouvem-se berrar as manadas de focinho alto e molhado. O corregedor mandou vir o gado bravo que pôde e, metendo-o à frente, em chocalhada, a cobrir os mosqueteiros, empurrou a onda de castelhanos para as lanchas. Entre os cornos dos toiros picados pelos pastores e a borda de água, os fugitivos molhavam-se até à cintura, e ou conseguiam deitar a mão aos batéis ou se afogavam. Os solda¬dos da ilha consumavam sem dó nem piedade a obra dos curros castiços...
Mandando os cadáveres para a vala numa traseada de carros como quem recolhe trigo, Ciprião de Figueiredo entrou triunfante na Vila arrastando na terraceira do Arrabalde as tôrres e leões dos estandartes.

VITORINO NEMÉSIO
MM
conclusão

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