13 de setembro de 2010

NOSSA SENHORA DOS MILAGRES, DA SERRETA














































por João Ilhéu, in "Touradas e Romarias" 1929

É manhãsinha. Dos lados do nascente vem ainda uma luz azulada que imprecisa as coisas, roubando-lhes as tonalidades fortes do dia pleno. Um ar macio percorre-nos a face, ar cheiroso de caruma e ervas tenras, que balsamisa e dispõe bem.
D'aqui, do balcão de pedra negra onde riscas largas de cal deixam uma nota de frescura, avista-se a estrada branca de bagacina até uma graciosa curva que dois velhos moinhos ladeiam, projectando no céu os braços nus. 
Um mugido vem quebrar agora o silêncio dêste alvorecer, repercutindo-se pelas quebradas, em ecos sucessivos, como se a natureza até ali adormecida, fôsse despertando em espreguiçar molanqueiro, já bem fartinha de sôno.
Cruzam-se no ar as primeiras asas, o toito pipila a canção matinal dêsse dia de Setembro
Trindades. Um dourado fulvo desfez quasi o azul, recortando a folhagem das árvores próximas e coroando de luz o dôrso das serras altas.
Passam á cancela os primeiros bois, na cadência compassada das lavras que a lembrança do arado lhe deixou. Atraz o pastôr, bordão ao ombro, puxa fumaças de milho, despreocupadamente.
Sente-se já um rumor de vida por toda a terra. A passarada entôa seus cantos com profusão de escalas. Nédia moçoila, de ancas largas, conduz á cinta o pote de madeira a lacrimijar água fresquinha.
De corrida empoeirando tudo, passa uma carroça com seu garrano, a trote largo, num chocalhar de ferragens que estremece a gênte.
Depois um carro, vagaroso, a chiar nos eixos o pêso das faias. E gênte que se crusa e se salva cada qual para seu mister, na azáfama dos dias de festa...
Por detraz da serra, das bandas da cidade, o sol mostra já seu disco de ouro  a projectar sombras compridas.
Um minuto mais, e as tôrres da igreja têm a primeira chapa de luz.
O sol é esperto romeiro:
- Senhora dos Milagres, bom dia!
*** 
Há festa na igreja. O altar da senhora, cobertinho de flores, entre dezenas de lumes a tremular, é como um jardim suspenso onde um enxame de abelhas douradas descesse á procura de mel.
Muito calada, muito branca, cheirando a incenso e rosas orvalhadas, a igreja da Serrêta não tem o aspecto grave d'outros templos - parece mais um recanto de piedade onde almas cristãs, cansadas do mundo, corressem a banhar-se, perfumando-se de novas graças.
O sol que entra pelas janelas amplas enche-a duma luz forte - uma luz viva, palpitante, que é toda pureza e claridade e lhe rouba aquele ar de mistério, o frio e gelado mistério das igrejas antigas, de lagêdos gastos, impregnados de cheiro a humidade e a cêra.
É dia de procissão. Por detraz da grade polida dois andores pequeninos - um todo azul, o outro côr de rosa - aguardam que mãos piedosas os levem, naquela romaria de saudade, até junto do povo crente, pelas ruas alcatifadas de fêno.
Cá fora, no adro do terreiro,o pôvo espera-os também. e a Nossa Senhora, no seu trôno pequenino todo cheinho de flôres.
- «Senhora dos Milagres, tende piedade de nós»
               Dlão! Dlim! Dlão! Dlim!
Vai saindo a procissão. Á porta, pelos degraus, sobre a estrada, nos balcões, o pôvo comprime-se, espreitando nos bicos dos pés, por cima daquele oceano de cabeças descobertas, a passagem do cotejo. Na frente o guião; depois alas de opas, brancas e vermelhas; as meninas da comunhão com seus véus de gaze compridos; os rapazes todos de preto com laços de sêda no braço e nos sírios; o andores, mais opas, e finalmente Nossa Senhora.
O pôvo ajoelha, devoto e contrito, resando baixinho.
 - Ave Maria, cheia de graça...
Uma girândola de foguetes subiu no espaço, salpicando o azul de nuvensinhas redondas; e a música, entoando a marcha cadenciada, lá segue o cortejo, compassadamente, atraz do páleo dourado.
O adro, o terreiro e o troço defronte da egreja, estão ornamentados com vistosos arcos de madeira, seguros nas extremidade por anjinhos roliços com mantos coloridos a tiracolo, e apoiados em altas colunas de quatro faces, caiadas a várias côres, que mastros fortes suportam ostentando no topo uma bandeira. Aos lados renques de faias altas marginam toda a estrada no percurso da procissão, e das casas trazem cêstos de verdura e flôres a atapetar a rua: - Fêno, alecrim, hortênses e giestas bravas.
E quando a procissão passa  e aquela verdura é pisada, moida por milhares de pés que sem piedade a esmagaram, envolvendo-a no pó, o ar fica empregnado de extranhos odôres que a noite fortalece, fazendo-os subir, como incenso, ao redor do altar da virgem.
- Senhora dos Milagres, rogai por nós.
MM

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