30 de agosto de 2010

A TERCEIRA E OS CASTELHANOS

Revista dos Centenários
Dezembro de 1940

A BATALHA DA SALGA V
por Vitorino Nemésio
Foi neste estado de espírito que se ordenou que D. Lopo de Figueroa aparelhasse para ir em socorro de Valdez. Êste tinha um primo consigo, o mestre de campo D. João de Valdez, rapaz de sangue na guelra, grande cavaleiro, inquieto para se bater. Nem um nem outro estavam dispostos a repartir com um guarda-costas chegado à última hora os loiros dos loirais das ilhas.
Com mêdo de que o vento, de um dia para o outro, alinhasse a bordada das naus de D. Lopo à vista de Angra, D. Pedro de Valdez apertou a rede de espionagem que tinha montado em terra. Apesar de não haver «calheta, praia ou pedra». como dizia o Regimento, que não devesse ter vigias, os batéis de bordo conseguiam iludi-las, ou os do partido espa¬nhol comprá-las. O sistema de vigilância da ilha consistia em pôr dois homens em cada lugar que mais mar descobrisse ou em sítio que comandasse os acessos de terra. Se estavam longe, faziam fogaréus; se perto, sinais de facho. Mas era mais natural que, vigiando veleiros de blo¬queio, que também poderiam aproveitar dos sinais, estas vigias funcionassem como patrulhas, ligando-se estreitamente às que, à bôca das peças, tinham o arcabuz já cevado e o mor¬rão à primeira voz.
Mas, em terra, ninguém tomava a sério uma hipótese de desembarque longe de Angra. A prova é que, apesar dos movimentos suspeitos da esquadra a leste, Ciprião de Figuei¬redo se limitou a fazer patrulhar a costa do Porto Judeu por vinte arcabuzeiros e dez piqueiros, que, se fôsse preciso, enquadrariam o povo daqueles lados.
Eram 25 de Julho; estava a rasgar a manhã. Uma brisazinha de sudoeste puxava de¬vagar; o céu estava um pouco embaçado e abafadiço. D. Pedro de Valdez mandou saltar duzentos homens às lanchas e embarcar algumas peças pequenas, que cobrissem o primeiro avanço. A operação fazia-se a légua e meia de Angra, na Casa da Salga, suficientemente longe para retardar reforços e com espaço e abrigo bastantes para a manobra. Além disso, o campo ali era largo, de searas ceifadas, bom para estender a infantaria.
Ao Cantar do galo o vigia da Ponta dos Coelhos, apesar das surriadas de bordo, deu sinal para terra. O sino de Santo António do Pôrto Judeu tocou a rebate. Mas custava a juntar aqueles lavradores espalhados por umas dúzias de fogos apenas, estendidos do mar à serra, ainda a dormir ou a ordenhar. Os poucos soldados a postos tiveram que largar as pe¬ças, deitar a correr. O Licenceado Oncel, que vinha de Angra com gente firme, ainda tentou alguma coisa. Os seus homens tinham comido uma rêz, bebido uma pipa de vinho, levavam biscoitos nas cevadeiras. Mas os espanhóis, que traziam a bordo um sujeito do Faial, para lhes ensinar a costa, tinham podido desembarcar a bom recato, tomar as primeiras trinchei¬ras, espantar os vigias bisonhos e pouco práticos.
Traziam à frente bons capitãis dos têrços, gente batida. Vinha D. João de Valdez, o instigador do desembarque; vinha D. Álvaro de Bazan e um sobrinho do Duque de Alba.
Era já dia claro quando as duas facções se chocaram: os espanhóis, reforçados com mais duzentos homens; a gente da terra, acabada de chegar da vila de S. Sebastião, que ainda é longe. Do caminho da vila à baia da Salga eram para aí três quilómetros de campina a passar à pressa, por cima dos restolhos quentes, com o inimigo dentro e em posição. Baltasar Leonardes era o capitão por D. António. A sua gente não se atrevia até à Salga, já tomada pelos mosqueteiros de D. João de Valdez, que começavam na razia. Excitados pelo fogo e pela promiscuidade de bordo, os espanhóis perdiam a medida humana, insultavam os ilhéus com dichotes e palavrões.

continua
MM

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